domingo, 16 de março de 2014

O menino do mundo e eu

Por Sousa Neto - Surgem dias que anoiteço achando a vida ruim, e talvez tenha razões para isso ou talvez não haja razões para tanto. O que tenho não é muito, mas há os que têm bem menos ou não têm nada: carregam apenas a vida coberta por fiapos de pano.

Uma dessas criaturas aparece por aqui constante em busca de acolhida: tem pele escura como os primeiros humanos e é filha da escravidão que este país manteve por séculos. É um menino sem pai, sem mãe, sem ninguém, sem endereço, sem nada. Nem o nome tem nos registros oficiais: é como se não existisse, mesmo vivendo. Se desaparecesse agora, ninguém sentiria sua falta; ninguém notaria sua ausência. É alguém que vive sem existir, é um menino sozinho, é um menino do mundo.

Outro dia, em um momento de tristeza, me disse que "coisa ruim é não ter pai nem mãe”. Eu o ouvi e me calei, e ele confortou-se com meu silêncio. Ser ouvido já foi suficiente para seu contentamento. Na ausência de palavras, pensei: se eu que tenho tantos ao meu redor me sinto por vezes saudosista e solitário, imaginem o que esse menino não sente, mas talvez sinta menos do que eu, que sou um escravo de mim mesmo, cativo de minhas próprias frustrações, presidiário do sentir pelos desequilíbrios do mundo e do tanto que grandiosamente pequeno me sinto diante de tudo. Mas ele, o menino, goza de toda a liberdade. Vive como um passarinho na mata: percorre os caminhos que quer, mas as estradas não são totalmente livres mesmo para quem a consciência deu asas. Há pedras e armadilhas nas veredas.

Em algumas vezes o encontrei tonto de fome, tombo de sono, mas não totalmente esgotado em seu desânimo. Um fio qualquer de esperança o alimenta, o faz querer estar vivo, mesmo envolto a tantos infortúnios. Não tem o que comer nem onde dormir em um país de cofres públicos tão fartos. Fartos também de leis nascidas para protegê-lo, mas nenhuma o alcança. Também eu tenho minhas fomes e minha insônia, e não são curáveis com uma mesa farta nem com uma noite de profundo sonho.

Mas o menino que vagava por aí hoje está distante: foi levado por um circo que passou aqui, qual poeira soprada pelo vento. O circo precisou dele e ele mais ainda do circo. Encontrou acolhida, trabalho e ainda mais liberdade: percorrerá muitas cidades, verá muitas pessoas diferentes, continuará sem endereço. Agora eu invejo o menino: queria também seguir com o circo, me trajar de palhaço, correr o mundo, alegrar a humanidade inteira e que a vida fosse para sempre um espetáculo eterno de gargalhadas. .

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