Por
Sousa Neto - Surgem dias que anoiteço achando a vida ruim, e
talvez tenha razões para isso ou talvez não haja razões para tanto. O que tenho
não é muito, mas há os que têm bem menos ou não têm nada: carregam apenas a
vida coberta por fiapos de pano.
Uma dessas criaturas aparece por aqui constante em busca
de acolhida: tem pele escura como os primeiros humanos e é filha da
escravidão que este país manteve por séculos. É um menino sem pai, sem mãe, sem
ninguém, sem endereço, sem nada. Nem o nome tem nos registros oficiais: é como
se não existisse, mesmo vivendo. Se desaparecesse agora, ninguém sentiria sua
falta; ninguém notaria sua ausência. É alguém que vive sem existir, é um menino
sozinho, é um menino do mundo.
Outro dia, em um momento de tristeza, me disse que
"coisa ruim é não ter pai nem mãe”. Eu o ouvi e me calei, e ele
confortou-se com meu silêncio. Ser ouvido já foi suficiente para seu
contentamento. Na ausência de palavras, pensei: se eu que tenho tantos ao meu
redor me sinto por vezes saudosista e solitário, imaginem o que esse menino não
sente, mas talvez sinta menos do que eu, que sou um escravo de mim mesmo,
cativo de minhas próprias frustrações, presidiário do sentir pelos
desequilíbrios do mundo e do tanto que grandiosamente pequeno me sinto diante
de tudo. Mas ele, o menino, goza de toda a liberdade. Vive como um passarinho
na mata: percorre os caminhos que quer, mas as estradas não são totalmente
livres mesmo para quem a consciência deu asas. Há pedras e armadilhas nas
veredas.
Em algumas vezes o encontrei tonto de fome, tombo de sono,
mas não totalmente esgotado em seu desânimo. Um fio qualquer de esperança o
alimenta, o faz querer estar vivo, mesmo envolto a tantos infortúnios. Não tem
o que comer nem onde dormir em um país de cofres públicos tão fartos.
Fartos também de leis nascidas para protegê-lo, mas nenhuma o alcança. Também
eu tenho minhas fomes e minha insônia, e não são curáveis com uma mesa farta
nem com uma noite de profundo sonho.
Mas o menino que vagava por aí hoje está distante: foi levado
por um circo que passou aqui, qual poeira soprada pelo vento. O circo precisou
dele e ele mais ainda do circo. Encontrou acolhida, trabalho e ainda mais
liberdade: percorrerá muitas cidades, verá muitas pessoas diferentes, continuará
sem endereço. Agora eu invejo o menino: queria também seguir com o circo, me
trajar de palhaço, correr o mundo, alegrar a humanidade inteira e que a vida fosse
para sempre um espetáculo eterno de gargalhadas. .
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